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quinta-feira, maio 15, 2008
Hoje não tive tempo para chorar

E tanto assim foi que, vai-se a ver, e o meu hoje já passou a ontem e eu só agora parei de trabalhar e dei conta disso. Acordei com a puta da dor na perna, a latejar, a moer, a pensar que devia ir para o hospital pela terceira vez, mas que não tinha tempo para isso, que havia outras prioridades. Engoli um comprimido para as dores e reprimi as queixas, porque havia outra paciente - a minha mãe - para depositar na CUF Descobertas, a nossa segunda casa. Não pude chorar pela tristeza de a deixar mais uma vez no hospital (uma operação simples, nada de grave, mas não a ter em casa aperta-me o coração), nem pelas dores na perna, porque tinha que seguir viagem. Passar para a outra margem do rio para um trabalho, que idiota, não era Montijo, era Alcochete, telefonema para me pôr no sítio certo, bip-bip de mensagens que não se respondem na hora e que passam de ideia, voltar ao fim de muitas horas para trabalhar mais deste lado do rio, fome, incómodo, dores de cabeça, tempo cinzento, condutores domingueiros à quarta, chegar e queixar-me do trabalho quando na verdade não era isso que me estava a incomodar e a azedar o humor, era o tempo a passar e eu sem tempo para derramar o mar de lágrimas que me apetecia. Gente a revirar-me os olhos de impaciência e incompreensão compreensíveis, a reunião das quartas-feiras, tamborilar com os dedos na mesa, olhar para o relógio, pressa para me enfiar no carro, voltar para casa, aproveitar o caminho para chorar. Elevador que demora, chegar à rua e estar a chover, ter que andar depressa, carregada, chapéu nem vê-lo, remexer na mala para encontrar o telemóvel e ligar para uns recados rápidos, enquanto abria o carro perante assobios inconvenientes do café da frente e atirava a tralha toda para o banco de trás. Entrar no carro e pensar nos atalhos todos que podia percorrer para chegar mais depressa a casa, que o meu pai estava sozinho e isso preocupa-me, e ainda ter que inventar um jantar. Notícia importante a dar na rádio, voltar a pegar no telefone e dar o alerta, podia interessar para o trabalho, e olhar para todo o lado que uma multa e carta apreendida não dão jeito a esta altura, aproveitar os semáforos fechados para folhear a revista da semana, que ainda nem tinha visto, suspirar de impaciência com o trânsito. Música que começa a tocar, daquelas que são um murro no estômago, mas nem aí deu para chorar, porque enfiar o carro na garagem continua a ser uma aventura ao fim de tantos anos, e olhos turvados de lágrimas podem muito bem resultar num raspanço no pilar da esquerda ou no carro da direita. Espreitar o correio, nada, esperar pelo elevador, segundo andar, conversa em dia com o pai, tratar do jantar para dois, massa a cozer enquanto se troca mensagens para contar as últimas, jantar, cozinha arrumada, chamadas por atender no telemóvel, cinema recusado, que não me consigo desdobrar em sete, sofá e manta polar para ver o resto das notícias e o Sócrates a jurar que não fuma mais, ligar à mãe, está tudo bem, quando é que voltas?, lágrimas que ficam só beira dos olhos, por uma tristeza que percebi que não é só de hoje mas que hoje custou mais. Computador, arranjar espaço na secretária, espalhar cadernos e papéis, escrever para adiantar trabalho, que amanhã o dia também não se adivinha fácil, mensagens, ah, grande merda, desculpas pelas mensagens que ficaram sem resposta há tantas horas atrás, completamente esquecidas, mails, telemóvel a pedir carga, quarto a pedir arrumação, livro a pedir leitura, documentário enfiado no dvd à espera de tempo para ser visto. E dei por mim e afinal hoje já era ontem, e não houve tempo para chorar, e agora também já não me serve de nada, nem de consolo, que o cansaço é maior que o resto.

1 comentário:

Teorias absolutamente espectaculares

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