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quarta-feira, março 04, 2009
A mão que embala o tacho

(texto publicado no Lux Frágil, nº6)

Notícia de última hora: há mulheres que não sabem cozinhar. Homens habituados a que lhes façam sempre o jantar já começaram a entrar em pânico.

Hoje é dia dos namorados. Quer dizer, quando o leitor puser os olhos nesta prosa, já estaremos em Março, numa contagem decrescente ansiosa até à Primavera. Os dias de sol já estarão muito mais perto, o verão já não parecerá uma luz ao fundo de um túnel infinitamente quilométrico. Aos poucos, começaremos a perder o tom amarelado da pele e o cinzento da alma. Mais um dia de chuva e tornamo-nos, oficialmente, no povo mais deprimido do mundo, com direito a baixa psiquiátrica e tudo.

Mas hoje, dia em que vos escrevo, parece que é suposto homenagear o amor. E enquanto estudo os ingredientes de uma tarte de queijo brie com doce de frutos silvestres, receita com a qual conto impressionar (ou envenenar, conforme o resultado final) a minha cara-metade, dou-me conta que isto sim, é amor. Eu, que mal sei estrelar um ovo, enfiada na cozinha à espera dele com um jantar que não sairá da Bimby, mas sim destas mãos de unhas vermelho-sangue-de-boi. Temo pela saúde do meu homem. Da história não rezam jantares de S.Valentim que metam gastroenterites, taxas moderadoras e noites a soro em Santa Maria. Temo por ele, temo. Mas temo mais por mim. A pressão aliada à inexperiência e total inaptidão é uma soma fatal que costuma dar para o torto, mas uma prova não superada também é coisa que não se aceita por estes lados.

Ao longo de muitos anos ouvi o meu pai traçar-me um destino fatalista. “Quando o teu marido perceber que não sabes fazer nada vem-te cá devolver”. Uma anedota que, no fundo, no fundo, ele desconfia que tem o seu quê de verdade. Mas já se calou com isso. Lá deve ter percebido que as fadas-do-lar acabaram na época da minha mãe, e que ele se casou com a última disponível no mercado. E que eu, filha única e de uma geração a anos-luz, sou defensora do equilíbrio entre géneros. Em tudo, cozinha incluída.

Aquela coisa de conquistar os homens pela cama e pelo estômago foi chão que já deu uvas. Quer dizer, a primeira parte, a da cama, será sempre verdade, mas isso funciona para os dois lados. Se um homem for fraquinho ou mostrar uma total inabilidade para a satisfação alheia, pode muito bem candidatar-se a um monumental pontapé no rabo. Mais do que legítimo, porque já mulher nenhuma, espero, aguenta uma vidinha sexual sofrível ou que tenha como único objectivo o prazer masculino. Pela cama também se conquista, oh, se conquista!, mas não é um negócio unilateral. Prazer para todos (sejam lá quantos forem).

Com o estômago a conversa é outra. Se concebo que uma relação acabe por mau sexo, já me faz mais espécie que alguém faça as malas a outro alguém por não saber confeccionar pezinhos de coentrada, polvo à lagareiro ou feijoada à brasileira. Meus senhores (sim, é com vocês homens que falo, já que é a vocês homens que a tradição beneficia sempre): estamos na época do take-away, do pronto-a-servir, do robot de cozinha, dos chefes que vão a casa, dos hamburgers a um euro. Há soluções gastronómicas que nunca mais acabam, dirigidas a todos os gostos, todas as bolsas, todas as disponibilidades de tempo. É assim TÃO relevante uma mulher saber cozinhar? É um valor assim TÃO acrescentado? É assim TÃO sensual chegarem do trabalho e ela estar envolta num avental enquanto refoga cebolas? Quando falam das vossas mulheres a outras pessoas, a primeira coisa que se lembram de dizer é que é uma cozinheira de mão cheia? A inteligência, a beleza ou o sentido do humor vêm atrás da capacidade de fazer um belo esparguete al dente? Não percebo.

Acredito que seja muito agradável chegar de um dia extenuante e ter o jantarito na mesa. O prato favorito, ainda por cima. Mas isto é bom para toda a gente, homens e mulheres. Aquela coisa da obrigatoriedade – do género, mulheres cozinham, homens trocam pneus -, dá-me cabo dos nervos. Porque, a verdade, é que mais depressa eu troco um pneu do que preparo uma refeição elaborada. Sei usar um Black & Decker – juro – mas nem sequer sei por onde começar na hora de fazer um bacalhau com natas. Acho que me falta em jeito o que sobeja em preguiça mas, quando estou para aí virada, ou quando não tenho mesmo outro remédio, cozinho. E até nem me safo nada mal. Se gosto? Nem por isso. Se é um hobby ao qual me dedico com prazer e dedicação? Também não. Mas às vezes não há nada a fazer, é a chamada lei da sobrevivência: se quero comer, se não tenho quem o faça por mim, se o saldo bancário não dá nem para o tal hamburger a um euro, ora então vamos lá embora para a cozinha.

Hoje à noite, quando lhe apresentar os lombinhos com broa e a tal tarte de queijo de cabra, não espero que ele me ache melhor namorada por isso. Não conto deslumbrá-lo com uma refeição digna de uma estrela Michelin, que o faça pensar “eh pá, sim senhor, estava aqui com umas certas dúvidas quanto ao que sentia por ela, mas agora que vi que até se safa entre tachos vamos lá marcar a data da boda”. Como em tudo, o que conta é a intenção, o gesto, o mimo. É só um agradecimento por todos os jantares que ele já me preparou com igual amor e dedicação. Porque lhe vai saber bem chegar do trabalho e não ter mais trabalho (excepto o de ter que ligar para Telepizza, em caso de urgência máxima).
Na verdade, isto é um pau de dois bicos. Se correr mal, recolho-me perante a humilhação da missão falhada, mas safo-me de ter que entrar na cozinha nas próximas décadas. Ou, pelo menos, enquanto na memória dele persistir a imagem (e o sabor) de tão tortuosa experiência. Se correr bem, recolho os louros e a certeza que serei convidada a chegar-me à frente mais vezes. Sinceramente, não sei o que prefiro.

P.S.: Se esta conquista pelo estômago resultar numa conquista ainda maior na cama, fica desde já prometida a partilha da receita na próxima edição.

P.S.2: Eu sou daquelas que uma das primeiras coisas que dizem sobre o namorado é que ele cozinha bem. É que se nas mulheres se espera que isso seja um dado adquirido, nos homens é uma raridade que merece divulgação. Na esperança que sejam cada vez mais.

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