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terça-feira, janeiro 06, 2009
Todos os anos, por esta altura a minha mãe repete a mesma história. “E depois eu pedi ao taxista para pararmos em casa, só para eu ir buscar a mala com as roupinhas, e quando voltei já ele se tinha ido embora. Devia ter medo que nascesses no táxi. Depois o teu pai queria que eu chamasse uma ambulância, mas fomos para a praça de táxis a ver se aparecia algum”. Eu faço sempre o mesmo ar de surpresa, como se estivesse a ouvir aquilo pela primeiríssima vez. Com esta e com muitas outras histórias. Como aquela que o meu pai conta, de estar sentado comigo na relva do jardim do Príncipe Real, distraído nas suas leituras, e de eu largar a gatinhar por ali a fora. Até que alguém gritava “olhe a menina”, e lá ia ele a correr atrás de mim. Uma vez, tão esperta, mas tão esperta, gatinhei até ao Sérgio Godinho e agarrei-me ao livro que ele estava a ler. É mais ou menos nesta altura que a minha mãe se sai com o “então e quando o Papa veio a Portugal em 82 e lhe tocou na cabeça?” (a minha, não na do Sérgio Godinho, que esse já é abençoado que chegue). Também relembram sempre, com orgulho, o facto de o Baptista Bastos me falar todos os dias, quando se cruzava comigo na rua Luz Soriano. Eu a caminho da primária, ele de regresso do Diário Popular, com o seu lacinho ao pescoço. Claro que eu só podia vir a ser jornalista. Morava na rua d’O Século e andava na escola na rua onde ficava o Diário Popular, o que é que se esperava? Do infantário lembro-me do Gabriel, a quem dava abraços. Lembro-me de ser a última a sair da mesa no dia em que a comida era açorda (fiquei com o trauma, nunca mais lhe toquei). Lembro-me do encontrão que me valeu três pontos no lábio inferior. Lembro-me das educadoras, a quem tratávamos por tias. Lembro-me da Ana Miller, a preferida, uma sonsa do pior. Lembro-me que era tão, mas tão perto de casa que no último ano já ia sozinha. Não havia cá raptos, nem Maddies. Brincava sempre na rua. Nunca fui atropelada, assaltada, esfaqueada, ninguém se meteu comigo. Até tenho fotografias descalça. Pedia para o Santo António e fazia pequenas fortunas. Um dia, também no jardim do Príncipe Real, palco de todas as minhas parvoíces infantis, recusei-me a ir para casa. O meu irmão tanto correu atrás de mim que caiu e partiu um braço. Lembro-me muito bem da Nã, a vizinha que era mais avó do que outra coisa, e que berrava desalmadamente quando lhe atirava cobras e aranhas de plástico pela janela. Também me lembro de passar horas a fio no Snob (como é que não havia de ser jornalista?). Era giro correr por lá quando estava fechado aos clientes, empanturrar-me em pipocas salgadas, ajudar a menina Maria a dobrar os guardanapos que, dali a horas, haveriam de servir para limpar a molhanga dos bifes. E lembro-me, tão bem, mas tão bem, de ir à antiga Luz ao domingo, quando os jogos eram todos às três da tarde, e de comer uns bolinhos em forma de laço. A relação com a Luz continuou. Era lá que tinha aulas de ginástica, depois ballet, tantos e tantos anos. Ainda o Colombo não passava de um gigantesco lago que servia de piscina às gaivotas.Apresentei-me no primeiro dia de escola com canetas de todas as cores, e fiquei desmoralizada quando soube que só íamos usar lápis e borracha nos primeiros tempos. A primeira professora foi a D. Ana. Depois morreu e seguiram-se umas dez, nenhuma tão boa. Ainda tenha a folha com o abecedário que ela ofereceu a cada um dos meninos, com as letras em maiúscula e em minúscula. Foi na primária que conheci o André, o primeiro grande amor. Era neto de uma senhora que trabalhava lá na escola e vivia no Algarve. Só vinha a Lisboa de vez em quando, para me desconcentrar. Passava as aulas a trocar bilhetinhos, com muitos corações, muitas juras de amor (a minha mãe ainda guarda alguns religiosamente, e quando me quer envergonhar vai buscá-los). E ele era um cavalheiro. Acompanhava-me a casa no final das aulas, dizia à minha mãe que não gostava que eu fosse sozinha. Coisa que me irritava, que eu tinha sete ou oito anos mas já era uma pessoa emancipada e com chave de casa.As férias eram sempre, mas sempre no Algarve. Há fotos que comprovam que eu estive na praia da Manta Rota, ainda a minha mãe estava grávida. E, desde então, não passou um verão em que lá não tivesse posto os pés. Foi lá que aprendi a andar de bicicleta e a gostar de caracóis. Enfim. Da primária fui para a preparatória, dali para o liceu Passos Manuel, onde passei seis anos (e fumei durante um mês), do liceu para a faculdade. Neste trajecto não me lembro de querer ser jornalista. Não me lembro de o ter decidido, nem sequer desejado com muita força. Gostava de escrever, não tinha jeito para mais nada, por isso fui para jornalismo. O meu pai estava no hospital no dia em que me licenciei. Outros azares bem maiores já nos tinham batido à porta antes disso, mas cá em casa leva-se a vida com alegria.
Já escrevi milhares e milhares de caracteres. A primeira vez que vi o meu nome a assinar uma peça foi n’A Capital. Tenho dois dossiers com todos os textos que lá escrevi. Aliás, tenho guardado tudo o que já publiquei na vida e que, não sendo muito, é uma conquista. É o meu legado. E ainda tenho muito para escrever.
Não me posso queixar da vida que tenho tido. E o melhor ainda está para vir. Afinal, hoje só faço 28 anos.

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